No último GE (06/06/11) estivemos discutindo o texto Gesto e Percepção de Hubert Godard. Não conseguimos terminar todo o texto, mas para mim, uma questão que ficou sempre retornando foi a discussão que Godard faz sobre a noção de pré-movimento.
No texto, primeiramente, Godard diz que pré-movimento está ligado a "atitude em relação ao peso, à gravidade, que existe antes mesmo de iniciar o movimento, pelo simples fato de estarmos em pé. Esse pré-movimento vai produzir a carga expressiva do movim
ento que iremos executar". Ou seja, é como se todo movimento intencional, gesto, carregasse ou está dependente uma tela de fundo que é independente a nossa intenção. Essa tela de fundo é também movimento. Está ligada ao esforço do corpo em se manter diante a gravidade... empurrando-a, resistindo-a
(pré-movimentos que favorecem nosso tônus muscular e delineam nossa postura).
Para H. Godard o estabelecimento do ponto de partida de um gesto está totalmente relacionado a esse pré-movimento (tônus,
postura) que por sua vez vão "colorir" o gesto. Mas a questão que eu realmente queria tratar nesse post é mais quando ele destaca que esse pré-movimento também está relacionado a uma inscrição história e o modus de tratamento/entedimento/leitura do corpo, como uma ética-estética do corpo. Ou seja, pré-movimento não se trata de mera questão físico-biológica mas há também um olhar sobre o vínculo contextual, histórico-cultural, e suas mitologias corporais.
Godard (que não é o do cinema) propõe um estudo da história da dança a partir dessa modulação (pré-movimento) do gesto: como questões históricas se inscrevem e aparecem num corpo que dança? Cito Godard (pp. 22-23):
O sentido ligado às modulações do peso que se exerce sobre o eixo gravitacional permite o reconhecimento de evoluções profundas da história da dança. Por exemplo, o desenvolvimento da estética do balé romântico está, inevitavelmente, vinculado à busca de elevação que se exprime através do uso das sapatilhas de ponta, das máquinas que transportavam as bailarinas pelo ar e, sobretudo, através da evolução da técnica que, ao longo dos anos, "esticou" o corpo até a morfologia característica das bailarinas balanchinianas. (....) Ao contrário, a dança moderna marca o retorno ao peso, à queda e ao pé descalço. Outras nuances serão introduzidas nas diferentes qualidades de "transferência de peso", centro das atenções de uma Doris Humphrey ou de uma Mary Wigman.
Essa reflexão de Godard me trouxe imagens ou pré-movimentos históricos que parecem abrir um olhar sobre a relação postura X tônus X gesto. Algumas dessas imagens também são citadas pelo autor para fazer uma análise das modulações gestuais e as leituras de expressividade,
historicidade, arquitetura, política, etc. Estou colocando aqui algumas imagens e vídeos para produzirmos atritos/relações e fazermos leituras: Homem Vitruviano de Leonardo Da Vinci, Icosaedro de Laban, uma imagem de marionete (remetendo a Kleist), Fred Astaire & Gene Kelly, e um símbolo icônico cristão. Ah! Tomei a liberdade de colocar uma foto do CoMteMpu's* num dos trabalhos ligados ao seu projeto Corpo-Plástico-Objeto-Coisa (CPOC).
[Poderia sugerir outras imagens, mas o Blogger não tá ajudando muito aqui com as fotos. Vamos colocando elas em outros posts por vir, então.]
As imagens estão sem referências propositalmente... Dessas imagens, pensemos nas posturas corporais, alongamento, técnicas de dança, nas formas de corpo, na moral sobre o corpo, na mídia, etc. Que modulações de gesto somos capazes de perceber nessas imagens?
Façamos um jogo:
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O texto é nosso, multipliquemos!
* O CoMteMpu's é um grupo de cocriação e pesquisa em linguagens do corpo, desde 2005, residente em Salvador-Ba. Sou um dos zezas cocriadores e diretor do grupo. Aqui você pode acessar nosso blog e aqui tem um vídeo editado do espetáculo citado (espetáculo + debate), integrante do projeto CPOC.
(sRG)
Comecei:
ResponderExcluirna pesquisa lá do CoMteMpu's gostava de pensar no conflito CPOC X Homem Vitruviano. Enquanto em Da Vinci o corpo aparece como cânone das proporções, no CoMteMpu's o corpo cria jogos de assimetria. Na imagem o CPOC aparece exibido, manipulado, distorcido e dessacralizado.
Bom, se colocarmos o CPOC ao lado de cristo a coisa fica ainda mais louca.
Fico pensando nos critérios de comparação. Lembrei do prefácio d´As palavras e as coisas, do Foucault, onde ele menciona "uma certa enciclopédia chinesa" descrita por Jorge Luis Borges onde "os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) et caetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas". Que delícia imaginar uma taxonomia tão particular e imaginar o mundo que ela organiza e descreve.
ResponderExcluirÈ mesmo, Alex. Acho que o Godard tentou fazer uma classificação histórica mais voltada para o estudo do movimento... dos modeladores gestuais. No texto, ele até lembra o esforço do Laban e de outros (talvez... já não lembro). Mas eu acho mais divertido quando pensamos em taxonomias mais performativas como essas ai que vc citou do Foucault. A inventividade (ou até mesmo, ludicidade) que elas suscitam me soam bem. Fazendo uma des-apropriação do seu texto: imaginar gestos domesticados... ou gestos que se agitam como loucos... que de longe parecem moscas... divertido.
ResponderExcluirPenso na questão de uma relação corpo X geometria espacial que é sugerida no homem vitruviano de DaVince e em Laban dentro de seu icosaedro, ou ainda na marionete e em jesus na cruz. mas ao mesmo tempo me parece que as ênfases são distintas e complexas.
ResponderExcluirA mim chamou particularmente a atençnao nesse último encontro do grupo a questão da "gestosfera" em diálogo com o conceito labaniano de dinamosfera. Pensar numa gestosfera a la Hubert Godard é pensar nos "pontos cegos", naqueles lugares que o corpo não visita, pq não é verdade que todos os corpos podem visitar todos os luageres de uma dinamosfera, assim como não existe alguma coisa como uma pessoa de proporções perfeitas. Há sempre um "geste manquant", um lugar que não visitamos, pq somos sujeitos às deformações/ imperfeições de nossos afetos. Não somos como a marionete de Kleist, a rigor uma espécie de boneco/robô do século XVIII que não tem afetos próprios, só aqueles que o manipulador lhe confere. No texto de Kleist existe esta expectativa de que o bailarino pudesse ser um executor tão "perfeito" quanto o marionete. E no caso Hubert vai mergulhar na psicanálise para estudar esta questão que estaria na gênese de todo e qualquer gesto, desde a postura (gesto primeiro de resposta à gravidade) - a produção de movimento não é apartada da produção dos afetos - do simbólico, do histórico, do social .... e isso tudo me faz pensar na pergunta que apareceu logo de início - a gente escolhe nosso projeto ético-estético ou ele é que escolhe a gente? a gente escolhe a dança que faz ou ela que escolhe a gente? a gente dança o que quer ou aquilo que pode dançar?
Dani, sobre essas perguntas no final do seu comentário gosto de pensar que podemos ter projetos para essas coisas: ética-estética, a dança que a gente faz e o desejo/poder de dançar. Projeto é um desejo de projeção... ele vai negociando com o tempo em curso e todos os outros projetos também em curso que são, repito, outros. Esses "outros" não sabemos, não dominamos, mas lidamos com eles: fazemos seleções, recusamos coisas, dizemos sim, nos surpreendemos, temos medo etc. Assim, não há nada de sacro, aurético, no outro (ou podemos pensar nessa perspectiva)... Podemos assumir a postura de co-responsáveis sobre as coisas que produzimos e acontecem no mundo. Especificamente, a dança é uma delas.
ResponderExcluir(...)
Particularmente, me interesso em pensar-fazer sobre o jeito de me relacionar com esse outro; e acredito que criando formas relacionais, arte relacional, uma dança produzida a partir disso (jeito de relacionar um e outro, publico e obra, "eu"/"sujeito"/"self" e o "movimento"/"gesto"/"performance"), estamos pensando-fazendo uma ética-estética, ou se não, recolocando essa questão.
Lembro que vc falou no GE a respeito da leitura de Deleuze sobre a linguagem imagética no cinema ação. Me parece um bom exemplo.
Posso escolher criar uma dramaturgia onde os encadeamentos de imagens são editados a partir de uma causalidade (um vazo que aparece no início em cima da mesa e depois aparece sendo dado de presente a alguém) ou posso fazer um vazo aparecer como um "ferramental" de percepção/leitura (o exemplo que vc deu quando o vazo aparece por Y segundos antes de uma determinada cena para gerar modificações na percepção do que vem por vir). Em ambos os casos são escolhas e, também, em ambos pensam-fazem formas relacionais, ética-estética. O primeiro tenta se utilizar de uma estrutura narrativa mais esperada e outro busca deslocar a recepção habitual (lembremos que habito aqui é um recorte). Porém, se tratando de recepção, sempre tem aquilo que escapa a qualquer intenção.
Um segundo exemplo:
Cunningham opta por um corpo sem afetações. Sugere que o bailarino se relacione com o gesto a partir do que vou chamar aqui de uma efetividade da coreografia por ele proposta. Nesse projeto o gesto está somente focado numa efetividade biomecânica? Mas não é uma obra de dança? Claro. Mesmo no desejo de efetividade ainda assim o gesto está carregado de tantos outros rastros que se produzem durante e anteriormente a sua execução (contexto agora-outrora). As produções de sentidos, afetos e modos de recepção da obra são co-dependentes das formas relacionais que aqueles corpos produzem, que partiram de uma escolha (M.C.), mas só se efetivam no ato cênico. Aí está o jogo (a tal negociação que falava no início) entre intenção e a co-produção ética-estética.