Me fascina a leitura de gesto que faz Hubert Godard – “quando eu falo gesto, eu não penso unicamente no movimento, mas em todo seu aporte significante, simbólico” (Le geste manquant – Entretien avec Hubert Godard/ Nouvelle revue de psychanalyse), distinguindo –o de movimento – “ um fenômeno que descreve os deslocamentos estritos dos diferentes segmentos do corpo no espaço, do mesmo modo que uma máquina produz movimento”. Me fascina ver sua distinção sobre as obras de Cunningham e Trisha Brown. Será que posso ler o primeiro como autor de uma dança que se deseja movimento e a segunda como autora de uma dança que se deseja gesto? Estamos falando a nível de uma leitura muito minuciosa dos engajamentos gestuais de cada coreógrafo. Um nível profundo de detalhamento da observação das intenções do movimento (deveria dizer “intenções gestuais?) e de como suas diferenças produzem projetos ético-estéticos de naturezas tão distintas.
Como propõe Hubert, se pensarmos a atitude postural e o pré-movimento como um pano de fundo sobre o qual se desenha o movimento aparente (a figura), em Cunningham esta superfície de fundo se deseja neutra, invisível “desafetada”, para não “borrar” a figura da dança, para obrigar o espectador a ver o signo e a figura pelo que são. O bailarinos deve saber desenhar a forma sem ruído (..) ele não está lá para ser visto, mas para permitir o surgimento do signo procurado. Há um distanciamento entre a emoção do bailarinos e aquilo que ele produz. E ao eliminar esta emoção/afeto do bailarino na construção do movimento, ele tb elimina qualquer interpretação da figura dançada, distanciando, por sua vez, o espectador tb, que não encontra acessos para ser “levado diretamente pela dança”, sendo obrigado a dar conta do que vê com seu próprio imaginário perceptivo. O bailarino em Cunningham se quer marionete.
Já em Trisha(If you couldn’t see me), segundo Hubert ainda,nenhum signo, nenhuma figura é afirmada. Os movimentos são prolongamentos das tensões que existem a nível da emergência do pré-movimento. Então o espectador só pode ler a tela de fundo , a origem do movimento. Diz Hubert – “o marionetista é desnudado! Esta dança de Trisha a qual se refere, o bailarino dança sempre de costas – esconde o rosto, privando o público de um dos signos mais legíveis de afeto - e dando visibilidade à tela de fundo, o pré-movimento como gerador dos signos. O bailarinos em Trisha, ao contrário de em Cunningham, são afetado por seu próprio movimento e é a partir desse se deixar afetar que o espectador também é afetado.
Pensando nos ensaios e nos exercícios que temos feito, me vem muitas coisas.
Me pergunto se teria uma destas duas estratégias, Cunninghamniana ou Browniana, que poderia dar melhor conta de dar visibilidade à gênese do gesto em si,
ou se seria uma mistura das duas, tipo se deixar afetar pelo gesto (e revelar seu pré-movimento/intenção/afeto/pano de fundo) e tb poder se distanciar dele, encará-lo como figura, como forma, não experimentá-lo afetivamente.
E a questão do rosto – o quanto ele entrega uma leitura imediata das tensões em jogo num gesto. E o que significa o contrário, qdo ele se quer neutro, quase que um território não tocado pelo gesto, um pequeno reduto de distanciamento dentro do corpo.
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