sábado, 28 de maio de 2011

abrindo parênteses: aquilo que escapa ao gesto


G.E. de segunda-feira passada, 23/05/11, foi marcado pelo dia de esclarecimentos desconstrutivos (esclarecimento/desconstrução é um delicioso paradoxo, que, aqui, manteremos como um lúdico conflito filosófico). Passamos a noite de estudos esmiuçando as questões da desconstrução que apareciam como mais urgentes: desconstrução e metafísica, corpo, etnocentrismo, não-método da descontrução, leitmotiv, différance, logocentrismo, ética, violência, linguagem, escritura, suplementariedade, redução, dialética, alteridade... e muitas outras palavrinhas que se abrem em tantas outras portas.


Como eu já tinha anunciado que o faria, no G.E., para aprofundarmos essas discussões, apresentei uma introdução de forma mais geral sobre o percurso da desconstrução do pensador franco-argelino Jacques Derrida. Neste post, não vou tentar falar sobre toda a discussão que tivemos. Resolvi escolher um ponto da discussão que serve para pensarmos o projeto 100 gestos e desdobrar novas questões para além do que dissemos no GE.


Na minha fala no GE, inicialmente, tratei da tradição filosófica e sua busca pela "verdade", que ao longo da história foi suplementada por muitos nomes, conceitos e ações: idéia, essência, sujeito, razão, espírito, identidade, esclarecimento, emancipação, ser, dasein (...). Com esses dois últimos (ser/ dasein), chegamos ao filósofo alemão Martin Heidegger e seu projeto de "destruição da metafísica", que


(...) nada tinha de destrutivo; pelo contrário, ele buscava libertar os conceitos que ao longo da tradição, haviam enrijecido, pelo hábito de sua transmissão, em estruturas semânticas estáveis, fazendo-os retornar a experiência originária de pensamento da qual haviam brotado. (...) Muito sinteticamente, Heidegger pretendia retomar a experiência do sentido do ser que caíra no esquecimento, no decorrer da tradição, com a progressiva adesão do pensamento ao sentido objetivo das coisas. (Duque-Estrada, 2007, p. 53.)


A Destruição da Metafísica de Heidegger foi uma importante contribuição para o pensamento desconstrutivo de Derrida, sendo este último, se não, uma (des)apropriação do primeiro. O projeto heideggeriano trazia o termo Destruktion, em alemão. Derrida percebeu que a tradução para o francês, destruction, traria inevitavelmente um sentido negativo, criando então o termo “desconstrução” (deconstruction em francês). Apesar da aproximação etimológica do termo, o caminho traçado por Derrida foi distinto ao de Heidegger, o que traz a leitura derridiana uma soberania frente ao filósofo alemão. Para Heidegger, haveria uma verdade mais autêntica, o dasein (ser-aí, paraforeidade do ser), que tinha sido esquecida ao longo da metafísica e que precisava ser restituída. Já para Derrida não há como restituir o pensamento originário das coisas, até porque a “retomada da origem é manter-se no pressuposto por excelência de toda metafísica” (Duque-Estrada, 2007, p.54).


A partir dessa questão, no GE, pudemos problematizar algumas primeiras questões sobre o pensamento derridiano da desconstrução versus a questão do gesto. Dentre elas, gostaria de tratar da própria noção de genealogia do gesto. Toda genealogia que busca uma trajetória de originário, no pensamento da desconstrução, necessita se compreender como arbitrária. Arbitrariedade que também não deve ser temida, mas resistida. Buscar a gênese do gesto, por exemplo, precisa ser pensada como uma promessa e não uma afirmação.


Não se chega à origem de um dado gesto, pois os jogos de suplementariedade (rede de referencialidade da escritura) nos escapam. Isso não significa que as origens não existam. Muito pelo ao contrário, são construções de verdade, sempre arbitrárias. Necessidade de linguagem, comunicabilidade com o outro, desajeitada, que forja essa dada origem, gênese, trajetória evolutiva ou, ainda, mais amplamente falando compreensão, território, espírito, razão, logos (...) desse gesto.


Para Derrida a necessidade da linguagem seria uma violência que se impõe – crueldade – para dar conta do outro pelo enquadramento/redução do conflito da relação com o outro, que ele chama de logocentrismo. Cria-se uma verdade (originária) sobre o outro para detê-lo, abafá-lo; ainda assim, o outro sempre escapa, não se apreende, está sempre em devir (promessa de vir-a-ser). Nesse processo de entendimento (logocentrismo) e suas necessárias das ditas origens, verdades e purezas para apreensão, atrocidades são cometidas, promovendo uma potencialização da violência. Daí o pensamento da desconstrução admite que a arbitrariedade-violência não se pode evitar, porém precisamos exercitar uma resistência, tentativa de adiamento, também sempre em ação-promessa de não-redução.


Porém, esse exercício de resistir à geração de identidades (categorização) e entrega à errância de diferenciação (différance) não segue um molde pré-dado, ele precisa ser inventivo. Isso quer dizer que não se chega a um modelo de desconstrução, pois desconstrução é um movimento impossível. Sobre essa afirmação, Derrida (1990 apud DUQUE-ESTRADA, 2008, p.14) diz:


... as mais rigorosas desconstruções nunca se auto proclamaram como possíveis. E eu diria que a desconstrução não perde nada em admitir que ela é impossível (...). Possibilidade, para uma operação desconstrutiva, significaria, antes, o perigo. O perigo de se tornar um conjunto disponível de procedimentos, métodos e aproximações acessíveis baseados em regras. O interesse da desconstrução, de uma tal força e desejo que ela possa ter, é uma certa experiência do impossível.


Pensar a desconstrução como impossibilidade abre margens para aquilo que escapa ao mesmo e sua atualização. Nesse sentido impossibilidade é imanência de acontecimento. O "se deparar com o outro” (não somente o meu semelhante – humano –, mas qualquer outro – o que escapa), o face to face da desconstrução, é sempre uma solicitação de traição (também provisória) à possibilidade, à redução, ao que se apreende, ao logos, ao self.


Trazendo essa discussão para o nosso projeto 100 gestos, ao invés de buscarmos um princípio definidor de onde parte um gesto (biomecanicamente, culturalmente, socialmente, etc), num impossível exercício da desconstrução poderíamos pensar em gerar conflitos de origem, desdobrar o gesto, traí-lo, criar aforismos, legitimar a crise. Entender a pesquisa a um processo cirúrgico: reverter o corpo de cicatrizes.


No livro Enlouquecer o Subjétil (1998), Derrida fala desse processo cirúrgico na obra de Atonin Artaud como um forcener: uma cirurgia na busca de uma “verdade” (algo) que nunca chega, sempre o trai.


A tradução brasileira do termo sugere enlouquecer como equivalente, mas eu prefiro manter o termo em francês para remeter ao jogo na decomposição da palavra forcené (louco): “fora [for], forte [fort], força [force], fora [fors] e nascido [né]” (Derrida, 1998, p.34.). Na condição verbal, forcener, enlouquecer em francês, somente é tratado como verbo intransitivo. Derrida aprofunda o entendimento de tal concepção chegando à discussão do desmembramento etimológico da palavra, que vem do italiano fosennato, do latim foris, fora de, e do alemão Sinn, senso: fora de senso. Dessa maneira, ele indica que a ortografia forcené com c poderia ter sido apenas uma confusão com a palavra force, sendo mais correta a grafia forsené.


Derrida (1998, p. 35) diz:


A palavra corresponderia, portanto, ao termo alemão Wahnsinnige, de que Heidegger ressalta que não designa primeiramente o estado de um alienado (Geisteskrank), de um doente mental, mas principalmente daquele que é sem (ohne) o senso, sem aquilo que é o senso para os outros: ‘Wahn é palavra do alto-alemão antigo e significa ohne: sem. O demente [der Wahnsinnige, poderíamos traduzir aqui por forsené] sonha [sinnt] e sonha como nenhum outro teria meios de fazê-lo [...]. Ele é sensato de modo diferente [de um outro senso, anderen Sinnes]. Sinnan significa originalmente: fazer viagem, tender para..., tomar uma direção. A raiz indo-européia sent e set significa caminho’.


Forcener intransitivamente trata-se, portanto, de uma tomada de decisão para ingresso numa viagem que não busca um rumo acertado (senso), mas um estado errante de loucura e demência que toma uma direção não alienada, ou uma sensatez diferente em que não se busca nem o fim nem a certeza. Nessa perspectiva, ao forcener o gesto, como forcener le subjectile, o ato desconstrutivo estaria preocupado com um processo cirúrgico de intervenção que é requerido pelo gesto no seu processo de comunicabilidade. O gesto pede para afetado (“forcenido” ?), dilacerado. Forcener o gesto seria uma operação não para encontrar/apreender sua gênese mas uma “demiurgia ao mesmo tempo agressiva e reparadora, assassina e amorosa. A Coisa é reconstruída, a cicatrização lhe vêm do próprio gesto que a fere” (DERRIDA, 1998, p. 115). Tratar o gesto em busca do “si” para uma incessante entrega ao que escapa. Ato de amor, violência e traição.


Gênese do gesto como problema(.)(?) Gesto como problema(.)(?) Abertura (.)(?) Mudança de postura tanto ao proferir um gesto quanto ao receber/ler/perceber um gesto (.)(?)


Escolhamos onde por os pontos de interrogação.


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DERRIDA, Jacques. Enlouquecer o Subjétil. Ilustrações Lena Bergstein, Tradução Geraldo Gerson Souza. São Paulo: Ateliê Editorial: Fundação Editora Unesp, 1998.

DUQUE-ESTRADA, Paulo César (org). Espectros de Derrida. Rio de Janeiro: NAU Editora; PUC-Rio, 2008.

______. Desconstrução e incondicional responsabilidade. CULT: Dossiê: Psicanálise, linguagem, justiça, arquitetura e desconstrução na obra de Jacques Derrida. São Paulo, n. 117, 2007, p. 53-55. Setembro/2007 – Ano 10.

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(sRG)

Um comentário:

  1. fiquei pensando:
    ao invés de "genealogia" poderíamos pensar em "arqueologia". Estudar vestígios dos gestos... que rastros (trace/ecart) estão disseminados??
    mmm... arqueologia, to gostando!

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