sexta-feira, 1 de julho de 2011

reaprender a ficar em pé

lendo o neurologista/escritor oliver sacks, cheguei em um trecho que fala das estratégias dos parksonianos para escapar da paralisação, o que me fez lembrar da conversa de segunda passada, aquela ideia de um pré-movimento inconsciente e potencial (o que nos move a nos mover), o marionete antes da mão do manipulador. e como a condição específica dos parksonianos dá visibilidade à necessidade de algum estímulo externo para sairmos do lugar, o outro que nos tira da inércia.
também é legal ver as estratégias específicas de cada um (a música, o toque, ou um outro paciente que sacks descreve que tem muitas bolinhas de papel no bolso e quando fica preso a um ponto, sem conseguir andar, atira uma bolinha à sua frente e aquilo o faz seguir adiante, como joão e maria às avessas), que me faz pensar nas metáforas que nos constituem.
e a descrição de como o paciente ed w. tem que redescobrir a cada vez a maneira de ficar em pé, reinventando continuamente a sequência complexa que já temos automatizada. achei uma maneira comovente de pensar o estar no mundo e fazer arte.



Esse poder da música para integrar e curar, para libertar o parkinsoniano e dar-lhe liberdade enquanto dura a canção (“Você é música/enquanto durar a música”. T. S. Eliot), é absolutamente fundamental e pode ser observado em todos os pacientes. (…) Edith T., ex-professora de música (…) afirmou que se tornara “desgraciosa” ao ser acometida pelo parkinsonismo, que seus movimentos passaram a ser “rijo, mecânicos – como os de um robô ou boneca”, que ela perdera sua “naturalidade” e “musicalidade” de movimentos originais, que – em uma palavra – ela se tornara “amúsica”. (…) “Como fiquei amúsica, preciso ser `remusicada´”. Muitas vezes, contou, ela se achava “hirta”, completamente imobilizada, destituída de força, do impulso, da ideia de qualquer movimento: nesses momentos, sentia-se “como uma fotografia, uma moldura rígida” – um mero plano óptico, sem substância ou vida. Nesse estado, nessa ausência de estado, nessa irrealidade temporal, ela permanecia imóvel e impotente até aparecer a música: “Canções, melodias que eu conhecia de anos atrás, melodias atraentes, melodias rítmicas, do tipo que eu adorava para dançar”.
Com aquela repentina imaginação da música, aquele aparecimento espontâneo de música interior, o poder de movimento e ação retornava subitamente, bem como o senso de substância, de personalidade e realidade restaurada; então ela podia “sair dançando da moldura”, do visual plano e rígido em que estava presa, e mover-se com liberdade e graça: “Era como se de repente eu me lembrasse de mim mesma, de minha melodia de viver”. Porém, da mesma maneira inopinada, a música interior cessava e, junto, desaparecia todo o movimento e realidade, e Edtih recaía instantaneamente no abismo parkinsoniano.
Igualmente espantoso e análogo era o poder do toque. Em certas ocasiões, quando não havia música vindo em seu socorro e ela ficava totalmente imobilizada no corredor, o simples contato humano podia ajudá-la. Era preciso pegar sua mão ou tocá-la do modo mais leve possível para que ela “despertasse”: bastava caminhar com ela para que conseguisse andar perfeitamente, sem imitar ou reproduzir a outra pessoa, mas a seu próprio modo. Porém, no momento em que a pessoa parasse, ela também parava.
Tais fenômenos são observados muito comumente em pacientes parkinsonianos e em geral desprezados como “reflexos de contato”. A interpretação da srta. T. e, de fato, sua experiência parecem-me de um tipo mais existencial, na verdade mais “sacramental”: “Não consigo fazer coisa alguma sozinha”, disse ela. “Consigo fazer qualquer coisa com – com música ou com gente para me ajudar. Não sou capaz de iniciar, mas posso compartilhar totalmente. Vocês, `normais´, são cheios de `ímpeto´, e quando estão comigo posso compartilhar de tudo isso. No momento em que vocês se vão, volto a ser nada”.
Kant dizia que a música era a “arte da ativação” e para Edith T. isso é realmente, vitalmente verdadeiro. A música serve para despertar a sua atividade, sua identidade e vontade enquanto ser vivo e móvel, que de outra forma jazem adormecidas boa parte do tempo.
(…)
Ed W. é um jovem paciente muitíssimo talentoso portador de doença de Parkinson “comum”; ele com muita frequência se vê “emperrado”, “paralisado” na cadeira, incapaz de se pôr em pé. Ou melhor, incapaz de se pôr em pé diretamente. Mas descobiu métodos para erguer-se – indiretamente. Por exemplo, ele podia primeiro fazer um ligeiro movimento com os olhos (nada mais seria possível); depois, talvez, um certo movimento do pescoço; em seguida, talvez uma inclinação infinitesimal para um lado. Ele precisa executar uma sequência motora extremamente complexa que, em grande medida, tem de ser improvisada ou reinventada a cada vez, para atingir um ponto no qual – subitamente, quase explosivamente – se torna capaz de ficar de pé. Ele não consegue atingir esse ponto sem a longa sequência, mas, tão logo a atinge, de repente descobre que sabe como ficar em pé.
No momento em que se levanta, esquece o que acabou de fazer – o conhecimento de “como se levantar” só se faz presente no momento de levantar-se, é um conhecimento contido no ato. Mas esse conhecimento pode conduzir imediatamente a outros – como caminhar, como dançar, como pular, seja lá o que for. Esse conhecimento motor, o conhecimento de como agir, não é explícito para nenhum de nós; é um conhecimento implícito, como o da linguagem ou da gramática. O que parece muito característico do parkinsonismo é a perda do acesso ao conhecimento implícito, a programas motores embutidos – e o fato de que o acesso às vezes só pode ser obtido mediante um “truque”.
Muitos dos sintomas e características do parkinsonismo, especialmente a “paralisação”, devem-se ao fato de o paciente ficar preso em um “mundo” parkinsoniano, ou, melhor dizendo, em um vazio, um vácuo, um “não-mundo” parkinsoniano. (…) Esse estancamento depende, em parte, de um emperramento, ou paralisação, ou arrebatamento da atenção – depende, na verdade, de não haver um objeto de atenção adequado. A “cura” para isso (sendo ela possível) está em redirecionar a atenção de volta ao mundo real (que é repleto de objetos, objetos de atenção adequados). Às vezes, basta alguma pessoa dizer “Olhe!”, “Olhe ali!” ou “Veja só aquilo!” para libertar a atenção petrificada, para desacorrentar o paciente dessa atenção parkinsoniana enfeitiçada, embora vazia, e permitir-lhe voltar a ver-se com liberdade no mundo real.
(…)
Ivan é capaz de correr vários quilómetros – se puder ser “ativado”. Em vez de se concentrar no primeiro passo (o que intensifica o seu emperramento), ele precisa desviar sua atenção para alguma outra coisa – qualquer coisa, uma folha, um objeto de percepção; ele toca a folha e, como que por mágica, isso serve p ara “libertá-lo”. De modo semelhante, Ivan pode não ser capaz de se levantar pela manhã usando diretamente a força de vontade; mas ele tem, ao lado da cama, uma árvore pintada na parede. Olha para ela, imagina que a está subindo, segurando os ramos para começar a se mover; com isso, se torna capaz de se erguer da cama.
Oliver Sacks, “Tempo de despertar” – pgs. 93-97

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