domingo, 11 de março de 2012

ética gestual

Aqui, em primeira mão, o texto que estou finalizando para o livro do Seminário de de Dança 2011, do Festival de Dança de Joinville , cujo tema era: "Criação, ética, pa..ra..rá.. pa..ra..rá.. - modos de criação, processos que desaguam em uma reflexão ética".

À quem se animar de responder ao questionário, agradeço imensamente.


Ética Gestual
O que entendemos por gesto? O que entendemos por ética? Por que juntar essas duas idéias para pensar a criação em dança?
Pista 1: O analista do movimento Hubert Godard, no seu texto Gesto e Percepção, pg. 13, faz uma definição interessante de gesto – “Quando eu falo gesto, eu não penso unicamente no movimento, mas em todo seu aporte significante, simbólico”, distinguindo–o do conceito de movimento – “um fenômeno que descreve os deslocamentos estritos dos diferentes segmentos do corpo no espaço, do mesmo modo como uma máquina produz movimento” Para ele, portanto, para pensarmos movimento enquanto gesto temos que levar em conta, além da mecanicidade e da trajetória espaço-temporal de um movimento, todas as suas dimensões afetivas e projetivas. O gesto, para Hubert, “se inscreve na distância entre um movimento e a tela de fundo tônico-gravitacional do sujeito, isto é, no pré-movimento, que nada mais é do que  a nossa atitude em relação ao peso, à gravidade, que existe antes mesmo de se iniciar o movimento, pelo simples fato de estarmos de pé. Esta relação com o peso já contem um humor, um projeto sobre o mundo. É no pré- movimento que reside a expressividade do gesto humano, expressividade que a máquina não possui”.  Esta idéia de que a organização postural já é em si um gesto de resposta à gravidade pode ser percebida ao observarmos as posturas das pessoas em torno de nós, suas diferentes formas de estar no mundo, alguns resistem mais à gravidade, enquanto outros cedem mais. Essas diferenças foram gestadas por vivências físicas e afetivas distintas desde a meias tenra infância e, da mesma forma geram expressividades distintas. Se  olharmos também para os corpos, posturas e atitudes das diversas modalidades de dança a partir desse pensamento, veremos que as diferenças entre o corpo do bailarino clássico, por exemplo, e o corpo do dançarino do hip hop revelam não apenas que cada um desses corpos é treinado em um repertório específico de movimentos, mas também que possui um jeito particular de se posicionar enquanto sujeito no mundo. Partindo dessa perspectiva,  a rigor não existiria movimento humano que não fosse gesto, já que todo movimento é sempre atualizado pelo humor, afeto e intenção do momento, seja consciente ou não.
Pensar o movimento de dança enquanto gesto significa afirmar que na própria performatividade do movimento dançado, existe uma proposta de mundo, um discurso, um projeto político. Nenhuma dança é inocente.
Pista 2: O filósofo Giorgio Agamben, em seu artigo “Notas sobre o gesto”, usa a distinção aristotélica entre ‘fazer’ (poiesis) e ‘agir’(praxis) pra pensar o gesto. Segundo Aristóteles, o fim do ‘fazer’ é outro que não o próprio fazer; enquanto ‘agir’ seria um fim em si mesmo. Dessa forma, um drama teatral, por exemplo, seria ‘feito’ pelo poeta/dramaturgo mas não ‘agido’ por ele, e esse drama seria ‘agido’ pelo ator, mas não teria sido ‘feito’ por ele. O gesto, segundo Agamben, não é uma coisa nem outra, não é um meio para atingir um fim, nem um fim em si mesmo, mas rompe a “falsa alternativa entre meios e fins  e apresenta meios que se subtraem ao âmbito da própria medialidade pura que se comunica aos homens”. O  gesto é algo que se desnuda no ato da mediação e se torna puro meio, sem finalidade exterior a ele mesmo. (...) Não tem propriamente nada a dizer, porque aquilo que mostra é o ser-na-linguagem do homem como pura medialidade.” Pesquisando a etimologia da  palavra “gestus”, que vem do latim, vemos que sua origem está ligada por um lado às noções de gerir, gerenciar, gestão e de outro, à gestar, gestação. Concluindo portanto a partir desse conceito, Agamben afirma: “O que caracteriza o gesto é que nele não se produz nem se age, mas se assume  a inteira responsabilidade e suporte de alguma coisa. Isto é, o gesto abre a esfera do ethos como esfera mais própria do homem. De que modo uma ação é assumida e suportada?”

Pista 3: Se a dança é o domínio do gesto por excelência,  é lícito afirmar que o movimento dançado é um discurso. Um corpo que dança revela a especificidade da performance que ele inicia, onde as informações que se processam nele se articulam e se dão a ver com todas as implicações políticas e sociais que lhe são implícitas, seja nas relações que ele engendra com o próprio movimento, com o espaço, com o espectador, com a cena e etc. O que cabe para o corpo que dança se aplica também para a cena. Todo dispositivo espetacular já implica em si mesmo a experiência de uma certa forma de uma comunidade, de um certo modo de estarmos juntos. O tempo de espetáculo é um tempo partilhado entre aqueles que fazem e aqueles que assistem. É uma “partilha do sensível”, para usar o brilhante termo do filósofo Jacques Rancière. No caso da dança, em particular, está em jogo a forma como se configuram as relações intersubjetivas entre dançarinos, as relações deles com o tempo e com o espaço partilhados com o público, as escolhas  de composição, de dramaturgia e de todos os artifícios que compõem a cena (figurinos, cenário, trilha sonora ...), assim como na própria gênese do movimento, no gesto (esta complexa combinação de fatores como tempo, espaço, fluxo, peso, olhar, presença, dinâmica, forma, que muitas vezes escapa às nossas tentativas de sistematização), há também escolhas que revelam uma forma de estar e agir no mundo, um tomada de partido, uma ética, um projeto político. Volto a Rancière para trazer sua elucidação sobre o conceito de política, e mais especificamente, das relações entre arte e política. Rancière propõe que para pensarmos a paisagem artística contemporânea seja necessário reconfigurar o que se entende por estético e político hoje. “A arte não seria política por transmitir mensagens políticas, ou representar estruturas sociais ou políticas. A arte seria política no sentido em que ela ‘enquadra um sensorium específico de espaço-tempo e na medida em que este sensorium define maneiras de estar juntos ou separados, de estar dentro ou fora, em frente de ou no meio de, etc.’ (Rancière 2005, site da Internet). O autor propõe pensarmos em uma ‘política da estética’, segundo a qual ‘as práticas artísticas participam da partilha do que é perceptível na medida que elas suspendem as coordenadas habituais da experiência sensória e recompõem a rede de relações entre espaços e tempos, sujeitos e objetos, o comum e o singular’(2005). Esse é um pensamento bonito e potente uma vez que afirma que a arte tem a possibilidade de criar outros mundos possíveis porque tem a potência de reconfigurar nossas sensibilidades e transformar nossas subjetividades.
Conclusão em aberto: Cada vez que colocamos um corpo dançando em cena afirmamos um projeto de mundo, dizemos com  gestos o que para nós é importante e o que não, o que merece ser apreciado, em que valores acreditamos, quais bandeiras defendemos. Nenhum gesto é inocente, nenhuma dança é “só estética”. E cada projeto estético, por sua vez, não é independente do mundo que o cerca, ele foi gestado nesse mundo e com ele dialoga, dando visibilidade ou invisibilidade a determinados parâmetros, dando voz ou calando algum discurso, e dessa forma colaborando na manutenção ou na transformação dos valores que o engendram.
Mas todas estas relações são extremamente complexas e não podem ser reduzidas a parâmetros simplistas, como o fazem os manuais que classificam e interpretam gestos de acordo com seus supostos significados, como se os gestos não  fossem estruturas plásticas, que se transformam e ganham novos sentidos de acordo com o contexto no qual estão inseridos. Levando então em conta a dificuldade (impossibilidade?) de se estabelecer parâmetros gerais para entender as relações entre gesto e ética, entre estética e política, vou finalizar este artigo com uma questão e uma provocação: A gente escolhe nossa ética ou ela nos escolhe? Muitas das nossas escolhas éticas, estéticas, afetivas são inconscientes, são heranças adquiridas nas relações familiares e sócio-culturais, nas informações apreendidas e processadas no percurso da vida. Nem sempre se faz a escolha que se quer fazer, muitas vazes se faz a escolha que se pode fazer em determinado momento. Reconhecer as próprias escolhas, aprender a discursar conscientemente  é um aprendizado contínuo que requer apetite para a reflexão e pra auto-crítica. Deixo aqui, então, um questionário, que pode funcionar (ou não) como uma pista pessoal de auto-reconhecimento ético-estético: Qual são as suas preferências quando você assiste a um espetáculo de dança? o que você espera do artista, o que você espera que ele te proporcione?
beleza
harmonia
talento
corpos bonitos
inteligência
eficiência
maestria e domínio do seu material
clareza de propósitos
controle da cena
relação direta com os espectadores
interação
ilusão
magia
transe
catarse
virtuosismo
humor
alegria
diversão
presença
mistério
glamour
entrega
engajamento
paixão
sofrimento
prazer
auto-exposição
auto-superação
risco
vulnerabilidade
fragilidade
identificação
entendimento, compreensão
conhecimento
surpresa
novidade
arrebatamento sensorial
emoção
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