No último GE, 18 de julho, estivemos mais uma vez discutindo questões de Hubert Godard, dessa vez através do texto Le Geste Manquant (O Gesto Faltante) – texto em que Godard faz relação do gesto com a psicanálise. Bom, o texto não tem tradução para português, mas temos a dupla sorte de termos no GE a Silvia Soter, que morou muitos anos na França e inclusive conheceu pessoalmente o Godard, e Eléonore Guisnet, “francesa original”, portanto dispensa comentários. Funcionou assim: Soter ia lendo e traduzindo diretamente para português; nos momentos em que algo truncava Guisnet socorria (com todos os artifícios gestuais, mímicos... enfim, o problema da tradução).
Como, para mim, francês é ultra mandarim, não vou me arriscar a traduzir nem mesmo afirmar colocações de Godard. Vale ressaltar que não tive acesso ao texto escrito... somente ouvi a tradução e fiz uns rabiscos no caderno de pontos que marcaram a discussão e me fizeram pensar em coisas outras. Alguns desses pontos, acredito, escapam ao próprio texto, mas chegou de alguma forma por conta dele e seu em torno. Vou transcrevê-los como aparecem no caderno...
Podemos então comentá-los sem fidelidade ao texto pelo exercício do desdobramento. Aqui faço um convite a quem possa interessar a manter as dobras:
- Godard parece querer discutir a relação entre gesto e carga simbólica, evidenciando sempre que toda ação simbólica surge de uma experiência concreta anterior. Ex.: O gesto de negar (gesto com a mão) está relacionado à experiência de empurrar algo com as mãos, afastar do corpo. Ou seja, a forma como se nega algo está relacionado a uma experiência de corpo no mundo;
- Sendo o gesto advindo de uma experiência física/concreta mais do que uma “kinesfera” e uma “dinamosfera” como apresentou Laban, segundo Godard, nós seríamos portadores de uma “gestosfera“, que é singular às experiências de cada indivíduo, portanto irregular, disforme;
- Imagem corporal se constrói na relação com o mundo e é constituída de caráter simbólico e afetivo. Sendo assim podemos fazer relação entre imagem corporal e gestosfera, pois ambos se constituem frutos da experiência;
- Do ponto de vista da psicanálise X gesto, a noção de autonomia do indivíduo está relacionada desde o primeiro momento em que o bebê sai do eixo da mãe (o corte umbilical) e passa a se relacionar com a postura, o peso, a resistência a gravidade, o empurrar do chão, comer, se relacionar com objetos, etc.
- Lembro que falei de uma relação “heterautonoma” (heteronomia X autonomia) ou uma “autonomia intransitiva”: o bebê passa a não depender mais diretamente da mãe para se relacionar no espaço mas passa a operar dentro de um jogo de codenpendências ao outro, que é sempre por vir, impossível de ser apreendido. Sendo assim, o eu (indivíduo, self, sujeito...) se diz autônomo porém é pertencente a um jogo de alteridade. Nesse sentido, todo self é exteroceptivo. O dito “eu” que converso comigo mesmo (que se diz lá dentro) é um outro (exterior) como quem esse outro eu conversa. Eu-outro, interior-exterior, se confundem... mas, politicamente, me parece interessante perceber esse jogo relacional como outro-outro.
- Seria possível pensar a gestosfera como uma ética corporal? Modo de operação/relação com o mundo. Experiência – alteridade – corpo – postura – carga simbólica...
- Já que o gesto está imbricado o fator ético, como não cair no risco da leitura do corpo? Como aquelas dicas e cursos de “psico-RH” que diz quais posturas e gestos são mais adequados numa entrevista de trabalho ou numa negociação com o cliente... “etiqueta”. Talvez, seja o caso de discutir sobre a não restituição do gesto.
- Falamos no GE que o gesto se diferencia de movimento justamente porque gesto se constitui na relação/tensão com o outro. Mas seria possível pensar num movimento isolado do outro? Que movimento escaparia ao jogo de co-dependência? Pensar nessa premissa também não parece admitir “gesto” como uma intenção de encerrar significado ou regulador da comunicação? - regulador aqui não deve ser entendido negativamente... regulador como mecanismos de intenção/desejo.
Não conseguimos terminar a leitura/tradução do texto... muito porque íamos parando para discutir coisas. Godard tem sido um grande parceiro para desdobrarmos questões sobre o gesto. Essas observações que transcrevi são super anotações e rabiscos pessoais. Podemos desdobrar essas questões ou trazer outras, associá-las. Semana que vem retornaremos a Godard em outro texto, dessa vez em português, intitulado "Olhar cego" - entrevista concedida a Suely Rolnik. Enquanto isso, façamos rabiscos em cima de rabiscos.
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