sexta-feira, 6 de maio de 2011

S.O.S - Primeiro dia do grupo de estudos (GE)

Gesto, educação somática, corpo, questões

Iniciamos o grupo de estudos na segunda-feira passada, 02 de maio de 2011. O encontro, regularmente, é coordenado pela pesquisadora Silvia Soter (RJ), que nos recebe em seu intimista Studio na Praça Pio XI, no Jardim Botânico – espaço onde S.S. ministra aulas de educação somática. Foi justamente pensando sobre “educação somática” que se iniciaram nossas discussões em grupo.


Usamos como texto base a transcrição de uma entrevista* da própria S.S. cedida ao projeto 100 gestos no ano passado. Na amistosa entrevista, S.S. parte de uma experiência autobiográfica (rompimento de um tendão numa aula de dança) para falar como o gesto apareceu como uma questão singular na sua trajetória. Na entrevista, S.S. diz:


[...] o movimento, de alguma forma, estava lá desde sempre, mas a ideia de que o gesto era alguma coisa que era preciso modular, o gesto como uma ideia de uma certa modulação, uma certa intenção, da base do que seria esse movimento, é nesse momento da minha vida que aparece, a partir de uma lesão. Do gesto que se impediu, do gesto que não se podia fazer, e como é que eu iria desviar e achar um outro caminho. E aí eu comecei a trabalhar nessa área que hoje a gente nomeia de “educação somática”, na época chamada de consciência corporal, e, desde 84, eu dou aula disso.



No grupo, S.S. ainda trouxe uma diferenciação etimológica importante entre corpse e soma. Alguns autores tratam das duas palavras como sinônimas, mas Soter tratou de distingui-las para nós. [S.o.S]Resumindo: corpse, que deu origem a palavra “corpo”, em seu rastro etimológico está mais ligado a experiência do “corpo objetificado”, o cadáver, o que pode ser dissecado, analisado, um corpo morto. Já soma está ligada a idéia da experiência viva, que se constrói na trajetória individual no mundo, uma idéia mais próxima de corpo-sujeito [particularmente, tenho algumas questões quanto a esse conceito "corpo-sujeito", ainda enunciado por um "eu". Mas vamos lá! Ao longo, creio que falarei mais sobre isso].


Lembrei até que, como diz Carlinda Nuñez**, soma aparece pela primeira vez em Ilíada, de Homero (séc. IX a.C.), como uma palavra que definia o contorno da psykhé ou, ainda a forma como ela se experiencializava (concretizava) no mundo, “ente no espaço”. É importante esclarecer que essa interpretação é posterior, pois na Grécia antiga esse conflito moderno de alma/corpo ainda não tinha se desenvolvido. Da mesma forma que outros conflitos binários como sujeito/objeto.


Dessa distinção explica-se que as intitulações “educação somática” e “consciência corporal” não são meros sinônimos, mas propostas ético-políticas diferenciadas de se tratar o corpo.


Uma aula de dança ou prática corporal qualquer, por exemplo, numa perspectiva de educação somática não teria o propósito de corrigir posturas ou execução de um movimento estudado. Isso porque a forma como cada um modula o gesto está intimamente ligada a experiência daquele corpo no mundo. Isso envolve desde questões biomecânicas, como restrições/possibilidades articulares, até questões de ordem afetiva, memória corporal, gostos etc. Imaginar que há um movimento a ser corrigido é imaginar que há uma forma cristalizada desse corpo que deve ser perseguida ["um corpo morto, cadáver"]. Nessa direção, as práticas em sala seriam uma espécie de (re)modulação e percepção do gesto a partir de uma nova experiência também singular daquele corpo, a maneira como ele se relaciona e produz rastros com aquela experiência. Gesto, corpo, experiência e linguagem, então, se confundem.


Se fizermos uma relação entre essa definição e a experiência autobiográfica relatada por S.S. podemos entender que pensar a questão do gesto, que tanto perseguimos nesse projeto, parece ter uma correspondência direta com a memória afetiva. Ou seja, a maneira como modulo meu gesto está diretamente ligada à experiência-corpo no mundo e sua suplementaridade. Ao fazer/perceber um gesto carrega-se uma historicidade vivenciada por um corpo-experiência que comunica, não um texto alfabético possível de ser traduzido na relação palavra-palavra, mas, sim, um rastro de inscrições (escritura) desse próprio corposomaexperiência.


A associação que rapidamente fazemos ao nos referirmos a “gesto” como as gesticulações que fazemos com as mãos e a outros movimentos e ações que realizamos ao passo que proferimos um discurso ou conversamos, muito provavelmente, trata-se de uma herança de nossa redução logocêntrica, tradição ocidental, sobre o gesto. Devido às gesticulações estarem diretamente ligadas à comunicação falada – tradicionalmente entendida como a hegemonia da linguagem – mais facilmente se identifica ali presente o gesto. São também, claro, mas aqui parece interessar questões sobre o gesto que vão além dessa primeira associação/tradição. É preciso pensar para além da articulação de palavras, artigos, frases e experiências alfabéticas.


Uma pista interessante é trazida pelo filósofo Jacques Derrida*** ao falar de escritura para elucidar a desconstrução da linguagem. Resumidamente, podemos entender a escritura como um jogo de rastros (traços, diferenças), maneira como construímos nossa relação com o mundo (e aqui podemos fazer analogia à experiência-corpo que vínhamos falando). A escritura seria uma espécie de arquitetura de textos, jogo de différance****, “arquiescritura”. Derrida esclarece em Limited (1991) a idéia de texto que compreende a sua desconstrução:


Gostaria de recordar que o conceito de texto que eu proponho não se limita nem à grafia, nem ao livro, nem mesmo ao discurso, menos ainda à esfera semântica, representativa, simbólica, ideal ou ideológica. O que chamo de “texto” implica todas estruturas ditas “reais”, “econômicas”, “históricas”, socioinstitucionais, em suma, todos os referenciais possíveis. (...) isso quer dizer que todo referencial, toda realidade tem a estrutura de um traço diferencial e só nos podemos reportar a esse real numa experiência interpretativa. Esta só se dá ou só assume sentido num movimento de retorno no diferencial. That’s all.



Esse pensamento de Derrida pode nos ajudar a problematizar a questão do gesto: que implicações estão presentes ao fazermos um gesto? O que se denuncia, ou, senão, são parte, dessa arquiescritura que diz Derrida? Pensar sobre a questão do gesto seria então uma interessante brecha para entendermos nosso processo civilizatório ou experiência no mundo, ou, ainda, relação corpo/ cultura?


<< Tá puxado? >>

Bom... Boom!



No G.E., surgiu então uma necessidade de pensarmos onde está a ênfase ou o traço de diferença entre gesto e movimento. Trazendo essa discussão para a Dança, podemos nos perguntar quando numa coreografia ou numa aula estamos dando mais ênfase à experiência do gesto ou ao movimento biomecânico. O movimento biomecânico é gesto? Seria possível pensarmos em alguma experiência de movimento humano que não esteja carregada de experiência afetiva, ou texto, no mundo?


Onde está a diferenciação na concepção de gesto ao pensarmos na execução de plié numa sequência de ballet e uma ação de sentar numa cadeira, numa das coreografias da Pina Bausch, por exemplo? Poderíamos, ainda, substituir um dessas ações citadas por uma experiência cotidiana qualquer, como agachar para pegar uma bola no chão ou tomar sorvete.


Coisas ainda a se pensar...


No G.E.:


>>Ação, movimento, postura, gesto, corpo. Onde estão seus traços de diferença?

>>Alex diz: quase física quântica!


>>S.O.Soter, então, joga um rolo de papéis metro no chão: Calma! Rabisquemos ai as questões que ficarem, mas também não precisamos resolvê-las agora!



|A euforia das discussões orais era tanta, que o papel permaneceu em branco até a próxima rodada; muito, provavelmente, porque foi nosso primeiro encontro e a ansiedade [de boa fé] de resolver quase tudo no primeiro dia não deu tempo de registrar nada no papel. Nem foto [pow, Neco!], nem nada. Até meu laptop inventou de, misteriosamente, apagar e perder todas minha obs. digitadas no bloco de notas|



Outras questões foram trazidas à tona durante a noite. Mas também não vou me precipitar em colocar tudo no primeiro post. Até porque, já são quatro da manhã, quase cinco, o Jô já foi dormir e meus olhos ardem. Além disso, “Cri” não gosta de posts muito longos e esse tá já imenso. Então, acabei!


zzZZZzzZZ...


ps.: to sem internet em casa e em plena mudança de apt... vou colocar esse post amanhã na rede, mas é sério: escrevi na madrugada de 05 pra 06 de maio.



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* Dança, Matemática, Psicanálise, Artes Visuais, Filosofia... pontos de convergências e divergências. Estudar gesto tem sido uma tarefa árdua. Para isso, o projeto 100 gestos realizou uma série de entrevistas com pesquisadores de diversas áreas para discutir sobre a questão do gesto. Essas entrevistas estão sendo transcritas e adaptadas para uma publicação futura.


** NUÑEZ, Carlinda F. Pate. O evangelho estético dos gregos. Revista Gesto, Rio de Janeiro, n.1, p. 44-47, dez. 2002.


*** Jacques Derrida (1930-2004), pensador francês nascido na Argélia, foi um dos principais precursores da efervescência do pensamento francês na década de 60. Semana que vem estaremos lendo o terceiro e quarto capítulo do livro “Corpo”, de Christine Greiner, onde ela faz referência à desconstrução derridiana. Não por acaso, eu estudo desconstrução há uns 5 anos em diferentes estágios (graduação, pibic, mestrado, doutorando...). Li o texto da Greiner e fiz algumas obs e revisões para discutirmos no grupo semana que vem. Acho que me adiantei... enfim, to contaminado. Mas haverão coisas outras mais a frente, RS


**** Différance é um termo cunhado por Derrida que faz um jogo com differer¸"diferir, postergar, adiar" em francês, e ance, extensão nominal para designar "condição, estado, ação de". Differánce pode ser entendida como “diferenciamento”, ação contínua de diferença. Porém, essa tradução de "Differánce" em português, como todas traduções, é arbitrátia; perde o jogo entre différance e difference ("diferença" em francês), que foneticamente soam e se pronunciam da mesma maneira em francês. É por esse jogo de não-tradução, ou ainda, indecidibilidade, que Derrida sugere a criação desse termo para que se distinguisse e se colocasse em questão difference que genealogicamente foi utilizada para designar uma simples oposição binária, ou seja, diferença como oposição, ou ainda, diferença como afirmação de identidade/presença: diferença = identidade = indiferença. Pensar a différance seria uma tentativa da desconstrução de perceber o processo de violencia ou de conflito que se estabelece nessa construção arbitrária de identidade-diferença. A différance não pretende entender/reduzir esse problema por uma simples neutralização de oposição ou sua estagnação, como faz a dialética hegeliana, mas sim "jogar" com esse conflito. Nesse sentido différance não é um conceito, mas como diz o próprio Derrida em Posições (2001), quase-conceito uma vez que não se pretende encerrar-se/reduzir-se em torno de um termo mas sim colocar-se em movimento (arrivant). Outras questões se entrecruzam nessa discussão como suplementariedade, crueldade, justiça, alteridade, indecidibilidade, disseminação, etnocentrismo entre tantos temas-problemas caros a desconstrução derridiana.


(vejam a seção de comentários deste post)

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Sérgio Andrade (sRG)

Um comentário:

  1. bom, eu mesmo vou postar um comentário aqui...

    É que logo depois do grupo de estudos de ontem, 09/5, senti a necessidade de ainda nesse post aumentar a nota de pé de página sobre différance. Explicá-la melhor. Antes na postagem tinha:

    "Différance é um termo cunhado por Derrida que faz um jogo com differer¸diferir em francês, e ance, extensão nominal para designar continuidade e adiamento, podendo ser entendido como “diferenciamento”- ação contínua de diferença. Derrida sugere a criação desse termo para que se distinguisse de difference, diferença em francês, que genealogicamente foi utilizada para designar uma simples oposição binária."

    Essa nota, eu tinha retirado de minha dissertação de mestrado, que ainda continuava: "A diffèrance será melhor abordada no item 2.2.1 dessa dissertação".

    Ou seja, na dissertação eu ainda falava páginas sobre différance e aqui a coisa ficava meio descontextualizada. Como somente no nosso encontro do dia 09/5 o problema da desconstrução apareceu como um PROBLEMA resolvi explicar um pouco melhor ainda nesse post, para dar uma (des)continuidade às discussões...

    [o bacana de blog é isso também. A gente vai multiplicando o texto pelo jogo de continuidade e descontinuidade, entre comentários e posts, alterações e errâncias]

    No encontro passado, logo no fim, muitas coisas explodiram e por isso ainda não sei por onde começar o próximo post. Então faço esse rascunho aqui, enquanto comentário-alteração-errância e assim já iniciamos ou denunciamos problemas.

    Mas o post (novo), já-já, sai.

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