quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Todo Chavão Abre Um Portão



Nestas últimas três semanas, o debate ficou em torno das entrevistas do psicanalista Benilton Bezerra e do crítico e historiador da Arte Luiz Camillo Osório. Começamos a falar a respeito da diferenciação entre gesto espontâneo e  cristalização do gesto, a partir da fala de Benilton sobre o gesto em Winnicot. A idéia de gesto espontâneo como umlugar que tem um engajamento da pessoa que, mesmo repetindo o gesto idêntico, ainda é capaz de estar na experiência deste ato, redescobrindo-o a cada vez. E  isso estaria diretamente ligado à qualidade de vida. Ele cita um texto do Octavio Paz falando do Marcel Duchamp, da oposição entre gesto e gesticulação :
"O Marcel Duchamp foi capaz de fazer gestos com essas características, enquanto que boa parte dos artistas da época se perdia em gesticulações, e a diferença entre uma coisa e outra era essa: a de que a gesticulação dos artistas up to date, que eram capazes de corresponder às expectativas, se perdiam tentando de alguma maneira decifrar o que se esperava, mesmo em termos de novidade, de surpresa, e ofereciam as novidades e surpresas que se esperava que fossem oferecidas, enquanto que Duchamp conseguia furar isso. É interessante, a maioria de nós gesticula o tempo todo, raramente faz um gesto de verdade".  
Relacionei isso com o que Camillo fala sobre  “a fonte” de Duchamp:

  “O fato de ser repetido por qualquer um não interessa, o que interessa é o que é irrepetivel naquilo e faz aquilo dança, e que tem a ver com uma determinada situação, tem a ver com o conjunto de relações que ele cria e de onde o sentido vai se construir, e não a mera habilidade, não é uma questão de saber fazer. Eu acho que essa questão do gesto, o gesto é não saber fazer, é inventar um sentido e esse sentido ganhar uma forma que, vamos chamar assim,se dissemina.”
Em Duchamp, a importância está no deslocamento, no processo. Então o gesto tem a ver com estar em experiência. Essa experiência que ganha forma e se dissemina. Penso então que no momento em que alguém introduz algum gesto que desestabiliza a relação de crenças sobre algo que está estabelecido de alguma forma (uma nova possibilidade fora do contexto) propõe uma mudança de paradigma. Todavia, o surgimento deste gesto é inaugurado por uma necessidade já vivida, como comenta Benilton a respeito do motivo que o fez buscar um tratamento mais “humano”, quando foi assistir uma eletroconvulsoterapia ao vivo. Ele fala que “o caráter brutal do gesto revelou instantaneamente o quanto aquele universo precisava de gestos ao contrário”. Sinto que o surgimento do gesto está vinculado à própria vivência da pessoa. Poderíamos falar de caráter talvez nesse caso, pois é preciso se chocar com uma cena dessas - para que isso se torne uma mola propulsora para o surgimento de um gesto ao contrário. Carregamos as informações de gestos em potencial, porém, o surgimento do gesto espontâneo depende, talvez, de um fator imediato.
Perguntei aos colegas em que medida nos dias de hoje existe a possibilidade de um gesto inaugural. A opinião do Rodrigo foi que "talvez o gesto inaugural, hoje em dia, seja dar continuidade a algo”. Vivemos numa época em que há um turbilhão de informações em torno de nós. Em nossa geração, ou mais precisamente, na atual juventude (pois me vejo nesse intermédio), há uma horizontalidade do conhecimento. O interessante é fazer analogias, relações entre uma área e outra. Os princípios, peculiaridades e contornos de cada campo se borram - como o hiperlink da internet. Relacionemos com o que surge no mercado de Cinema. Nossos pais estão acostumados a assistir um filme em que há um protagonista e que a história se desenvolve entorno da vivência dessa persona. Hoje em dia é muito comum ter filmes como “Crush”, ou “Babel” em que o foco não está no desenvolvimento de uma história, mas, sim, no desenvolvimento de uma rede que se cria de relações. Para os meus pais, acompanhar um filme desses, causa um estranhamento e até uma impossibilidade de acompanhar a narrativa. Por outro lado, como disse a Silvia “para muitos jovens, acompanhar um filme como ‘Melancolia’ também causa um desconforto”, pois a narrativa é lenta. Me fez lembrar de um atual mestre de karatê. Ele estava aflito pois no auge do crescimento nipônico pós-segunda guerra, ele se retirou com seu mestre em uma montanha para treinar, porém depois de um tempo, sentiu-se como se tivesse sendo deixado para trás, e o mestre lhe disse. “Mesmo uma relógio quebrado, aponta o horário certo duas vezes ao dia. Não se preocupe, quando você voltar para o sociedade, ela vai precisar da tua sabedoria”. Ir acompanhando o tempo, ou deixar que o tempo nos acompanhe? O que seria estar com o tempo? Tempo justo é tempo presente? Isso seria talvez uma pequena dialética temporal...O tempo de um gesto...O gesto é efêmero? Vejo gestos que se perpetuam por deixar sua marca como o “Deixar a vida pra entrar na história” de Getúlio Vargas, ou um aperto de mão; outros que somem sem deixar rastros. Onde está o meme de um gesto que o faz perpetuar? Ainda há gestos que parecem que morrem, porém continuam a nos rodear. Como as bandas pop: pensou que morreu, aparece outro. O gesto é muito temporal!

Camillo fala também a respeito de “estilo”. Surgiu um debate em torno desse conceito. Estilo como “neurose”, no sentido de dar sempre a mesma resposta, se manter sempre em um mesmo padrão, ou estilo como "gerador de consistência, como disse a Flávia Meireles, ou como um "ritmo particular", segundo o Camillo. Me fez lembrar do exercício que Rodrigo fez hoje no ensaio, no qual conseguimos enxergar muitas coisas, porém é nítido o estar na experiência da permanência, aprofundando uma possibilidade específica. Lembrei do texto do Steave Paxton que diz
“Nós temos que usar ‘aquilo o que nós nos tornamos’ de forma a não ser controlados por este devir, o que nos faria reproduzir o que nos tornamos automaticamente”.
Relaciono com o exercício que fizemos de descrever os 20 gestos que nos marcaram no século XX. Esses 20 gestos dizem muito de mim, com o quê e como eu faço analogias e percebo o mundo. A Silvia falou do eixo relacional de Camillo que sempre consegue fazer todas as analogias possíveis com o futebol. Lembrei de um colega da época da faculdade, músico. Ele conseguia sempre fazer relações dos Beatles com todas as questões do mundo. Pra mim o eixo referencial são as artes-marcias. É um gesto que me marcou e que faz parte de como eu faço relações de princípios. O eixo relacional então está ligado a memória. A diferença está de novo no ato da experiência. Estar em experiência é estar aberto para ser atravessado, nesse “tempo justo”. A cristalização do olhar leva a cristalização do gesto, ao adestramento. Acredito que uma chave para esse tempo está relacionado à expectativa que tenho da expectativa do outro, que leva a permanecer na zona de conforto. Quero demonstrar para o outro, minha atenção fica observando-me de fora para ver o quê estou fazendo. Não estou na experiência. Enfatizo, sublinho algo que já estaria ali se a atenção estivesse no devido lugar. Para mudar você e mudar o que o outro vê de você é necessário mudar o ponto de vista a partir do qual o outro te vê. A Mariana disse que “ao não corresponder às expectativas, você abre espaço para o outro. Não corresponder às expectativas não é um ato egoísta, é um gesto de generosidade.”
Na real sinto que isso tudo é muito simples e complexo. O gesto é algo simples, todos nós somos “gestores”. Mas o gesto que modifica toda uma forma de pensar, é simples, mas não é fácil. Como diz Camillo “o fácil é, digamos, sem expressão, e o simples é cheio de expressão. E o simples não é fácil, o simples é uma conquista”.

Um comentário:

  1. Tem um silêncio na criação do novo. Esse texto me fala disso. Muito bom.

    ResponderExcluir